quarta-feira, 30 de junho de 2010

Do que foi o Cupido capaz (texto de Angela Calou)

Arco e flecha. Semi-anjo, ancho, em perversa diversão. Na calçada, um coração-que-não-sabia derrama o líquido final. Cupido ri, não sabe do mal que é capaz. Para rir é preciso jamais conhecer o mal, e então, Cupido ri outra vez, conhece as nuvens apenas, e acha que Deus as fez qual algodão ou mesmo a lã das ovelhas que ele conta, antes de dormir, no salto imaginário das cercas imaginárias de sua fantasia... Pergunta às vezes: - Por que deste três nomes diferentes para essa mesma maciez? - Deus não responde, ocupado que é, e assim, o pequeno, ainda menino, enrolado ou não em um trapo, corre a aventura do céu, voa a curva elástica de não-atrito de sua anatomia metafísica, diz para si: sou uma idéia armada e derramada para fora de mim. Cupido, filho do amor e da guerra, e que pouco foi ao paraíso, condena os mortais ao inferno encarnado, na promoção do encontro que fará do desencontro, um dado inescapável, queira-se ou não. Como toda criança, é egoísta: acha que uma flecha é suficiente para um par. Se mais anos pesassem sobre o duplo de asinhas delicadas, saberia que para um duplo, uma flecha não é nada, e que duas, três, quatro, sete ou treze, miradas nas duas direções, sejam talvez ainda coisa nenhuma capaz de durar. Como toda criança, é tomado por gargalhadas gostosas quando alguém cai. Cupido é um menino inevitável, guardado nas esquinas dos lugares pelos quais não se costuma passar. Tem a natureza volátil, e nunca se responsabiliza pelos efeitos de seus feitos, pelos transtornos de suas setas incertas, é criança e tem mais é que brincar. Seus brinquedos, porém, desmontados a cada nova montagem, ficam ali pelo chão... fincam-se ali pelo chão...

Certo dia, quando a hora contava devagar e os temores todos adormeceram ao som da cítara distante, Cupido em meu caminho, fez-se uma constante... Seguiu-me silencioso e escondido, embora não tivesse a malícia de estancar o ruído dos sonoros passos. Fingi que não vi, de tanto susto... Mas era só uma criança, meus braços, quase o dobro do tamanho de seu tronco, não havendo assim perigo, caso continuasse seu passeio ocular sobre mim. Mimese: o que é você, Cupido, se referido ao real?... Decidi imitar a cor da paisagem, tornar-me invisível dentro do que é visível, posto que também não era de minha intenção destratar uma criança. Confesso, porém, que a insistência de Cupido, somada à sombra do risinho debochado, passara a me desconcentrar... desmantelando a rotina de meus gestos, o segredo dos meus passos, o decurso de minhas palavras, o sentido de minha condição. E desse modo, não me dei conta de que havia uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho havia uma pedra... e então, tropecei. Não preciso dizer que à pedra seguida do tropeço seguido da queda, seguiu-se a flecha única que me acertou, arriscadamente. Pensei em reclamar a Chronos que tolhesse para sempre a infância de Cupido, e portanto, a possibilidade pungente de traquinagens como aquela... mas de que adiantaria se o estrago expunha-se para quem quisesse ver? Se era meu o coração, que ali, na calçada, derramava-se inteiro, pagando a líquido o seu não-saber?

Angela Calou at
http://ecce-ancilla.blogspot.com/

Ilustração: Renato Feitosa

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